PANORAMA E PERSPECTIVAS DA APLICAÇÃO DA INTELIGENCIA ARTIFICIAL NA ADVOCACIA¹

Escrito por: Ana Gloria Santos Moreira de Souza²
Bruno Vaz de Carvalho³
Luciano Ceotto⁴

Sumário: Introdução; Capítulo 1. Inteligência Artificial como instrumento de democratização e acesso à justiça; Capítulo 2. Incorporação de Inteligência Artificial nos tribunais e na administração pública; Capítulo 3. Alterações da dinâmica de trabalho com a Inteligência Computacional e a Inteligência Artificial; Conclusão; Referências Bibliográficas. 

Introdução 

A Inteligência Artificial é parte indissociável da contemporaneidade. As relações de trabalho, a atividade empresarial, a política, e mesmo situações do cotidiano estão sob a direta influência da Inteligência Artificial. Países, governos, corporações e a sociedade civil se perguntam acerca de suas possibilidades e limites. 

Não há como conceber o Direito alheio a essa realidade inexorável, e, é nessa perspectiva que o presente artigo pretende investigar o panorama e as perspectivas da aplicação da inteligência artificial na advocacia, partindo da noção da Inteligência Artificial como instrumento de democratização e acesso à justiça. 

Desmistificando seus impactos, a partir da incorporação da Inteligência Artificial nos tribunais e na administração pública e, por fim, apresentando algumas relevantes alterações da dinâmica de trabalho com a Inteligência Computacional e a Inteligência Artificial, de modo a colaborar com o esforço de compreensão e análise dessa nova realidade para a Justiça, o Direito e a advocacia. 

Capítulo 1: Inteligência Artificial como instrumento de democratização e acesso à justiça  

A Constituição Brasileira de 1988 se preocupou de forma especial com a garantia do acesso ao Judiciário, elemento distintivo da cidadania norma basilar do Estado Democrático de Direito insculpida no artigo 1º, II, da Carta Magna5, reafirmado na tábua de valores e direitos e garantias fundamentais consagrados no artigo 5º, incisos XXXV e LXXIV do Texto Maior6

Se preocupou também em garantir instrumentos e garantias constitucionais do processo com a finalidade de proporcionar um acesso à efetiva e justa prestação jurisdicional, no que se denominou de prestação judicial efetiva.7 

Nesse elenco se incluem, de forma não exaustiva, com maior relevância, o duplo grau de jurisdição, a duração razoável do processo, a necessidade de motivação das decisões judiciais, o juiz natural, o direito ao devido processo legal, a ampla defesa e ao contraditório, o direito à gratuidade de justiça e a possibilidade de representação pelas defensorias públicas dos Estados e da União. 

“Não se pode perder de vista que a boa aplicação dessas garantias configura elemento essencial de realização do princípio da dignidade humana na ordem jurídica. Como amplamente reconhecido, o princípio da dignidade da pessoa humana impede que o homem seja convertido em objeto dos processos estatais.8 

O grande desafio do Brasil, país em desenvolvimento, parte do Sul Global, é proporcionar às pessoas, o efetivo exercício dessa matriz de direitos fundamentais, de modo que se estabeleçam não como uma bela, mas vazia moldura, e sim, como uma efetiva entrega de direitos em concreto. 

Nesse contexto desafiador se apresenta a Inteligência Artificial como um aliado precioso do Estado Democrático de Direito na promoção do acesso à justiça. 

“Law is not immune from disruption by new technology. Software tools are beginning to affect various aspects of lawyers’ work, including those tasks that historically relied upon expert human judgment, such as predicting court outcomes. These new software tools present new challenges and new opportunities. In the short run, we can expect greater legal transparency, more efficient dispute resolution, improved access to justice, and new challenges to the traditional organization of private law firms delivering legal services on a billable hour basis through a leveraged partner-associate model. With new technology, lawyers will be empowered to work more efficiently, deepen and broaden their areas of expertise, and provide more value to clients. These developments will predictably transform both how lawyers do legal work and resolve disputes on behalf of their clients. In the longer term, it is difficult to predict the impact of artificially intelligent tools will be, as lawyers incorporate them into their practice and expand their range of services on behalf of clients.9 

O primeiro fator importante é a compreensão e o controle dos dados que permitam seu uso como uma ferramenta econômica e social relevante para identificação e indução do espaço de tutela da coletividade no acesso à Justiça. 

Nesse sentido, o CNJ promoveu relevante pesquisa com os Juízes brasileiros, identificando que: 83% acreditam que o Balcão Virtual ampliou o acesso da população ao Poder Judiciário; para 88%, o Programa “Juízo 100% Digital” (que possibilita que todos os atos processuais sejam praticados exclusivamente por meio eletrônico e remoto) também aumentou a celeridade dos processos; 859 magistrados apontam que a ferramenta mais utilizada para atender ao público é o WhatsApp; para 96% o acesso à Justiça depende do acesso à internet; 66,5% dos respondentes afirmaram que houve aumento da carga de trabalho; 88,9% disseram que esse modo de trabalho melhorou a produtividade e a qualidade de vida; 96,9% avaliaram como positiva a experiência com as atividades remotas em comparação com as atividades presenciais. 

Muitas, além das situações identificadas na pesquisa CNJ foram as situações em que a tecnologia avançou no acesso à Justiça. As máquinas de andamento e os escreventes responsáveis pelo processo foram substituídos pelo acompanhamento on line do andamento dos processos, inclusive com sistemas de inteligência artificial que permitem a advogados buscar as publicações e andamentos processuais por meio de sistemas eletrônicos, destinando internamento em seus escritórios, tornando muito mais eficiente acompanhamento e cumprimento dos prazos, que, com o auxílio da inteligência artificial permite a utilização modelos de petições em que não serão esquecidas teses relevantes em sua elaboração. 

As pesquisas nas bibliotecas dos tribunais e nos repositórios de jurisprudência foram abandonadas com as ferramentas de busca na rede de computadores da internet, permitindo acesso a sites de tribunais, trabalhos acadêmicos, livros jurídicos, ou mesmo a modelos previamente produzidos por outros advogados para casos análogos. 

A comunicação e o acesso aos clientes também se transformam com a utilização de redes sociais e de comunicações diretas relacionadas, à atividade do advogado e aos direitos passíveis de tutela, fazendo com que o cidadão tenha conhecimento de seus direitos. Permite ao cidadão acesso direto ao seu processo em todas as fases e andamentos.  

No âmbito da Defensoria, a utilização da inteligência artificial poderá permitir a identificação de situações, pessoas e comunidades mais vulneráveis e redesenhar sua alocação de recursos e sua própria atuação, emblemática no acesso à Justiça. 

Em todos esses prismas do complexo sistema de Justiça podemos destacar a maior objetividade, menor potencial discriminatório e maior acervo de dados e informações em menor espaço de tempo, seja colaborando para a formação de uma peça persuasiva de um advogado, seja construindo uma decisão judicial com fundamentos e análises mais ricas e precisas em relação ao caso concreto. 

“Ninguna autoridad individual o colegiada — legisladores, tribunales o reguladores — tiene la capacidad de procesamiento de información necesaria para calcular que decisiones optimizan la satisfacción de los derechos fundamentales. Para suplir esta 

deficiencia, estas autoridades pueden valerse del análisis de big data de que es capaz 

la inteligencia artificial. Por esta razón, se ha señalado que la inteligencia artificial puede llevar a la adopción de decisiones administrativas más eficientes.”10 

Diminuir tempo, em atenção ao princípio da duração razoável do processo, significa, não apenas eficácia da prestação jurisdicional, mas economia financeira para todos os envolvidos, sejam as partes, seja o Estado.11 

Uma rica discussão na Universidade de Dartmouth trouxe à luz uma dúvida cada vez menos presente na sociedade contemporânea. As máquinas teriam capacidade de pensar, aprender, racionalizar, buscar e adquirir conhecimento? Nesse contexto se cunha a expressão inteligência artificial como representativo dessas valências.12 

Essa dimensão ainda incipiente quando de sua identificação, representa hoje situação presente em todas as situações do cotidiano, das relações pessoais às interações profissionais. Na indústria, no comércio, nos serviços, no ambiente privado e público. Nesse sentido como o direito e a justiça escapariam a essa ruptura no modo de vida. 

A inserção a inteligência artificial nas relações e processos jurídicos, nos apresenta um cenário em que os algoritmos ditam as novas relações e, assim temos os algoritmos como uma nova classe de fonte do direito.  

 “O algoritmo não deixa de ser um instrumento destinado a uma finalidade concreta e utilizado para melhorar processos e obter rendimentos de natureza diversa (embora, em última instancia, sejam essencialmente econômicos). Essa finalidade deve ser compatível com a constituição, como também devem ser os algoritmos desenhados para alcançá-la.13 

Ao passo em que se tem uma otimização de processos e de acesso a dados mais vastos e em menor espaço de tempo, a inteligência artificial como ferramenta da advocacia requer cuidados com elementos ligados ao enviesamento e sua direta influencia no acesso à Justiça. O desenvolvimento de ferramentas que criem uma discrepância na capacidade de atuação dos grandes escritórios em relação ao advogado profissional liberal ou à defensoria pode, ao invés de promover princípios constitucionais fundamentais como a igualdade e o acesso à Justiça, acabar por aumentar as distorções sociais brasileiras. Desamparando os mais vulneráveis. 

Ainda mais preocupante se esse enviesamento ocorrer na formulação das soluções pela inteligência artificial pelo Estado Juiz, perpetuando desigualdades de gênero, cor, classe social ou qualquer vulnerabilidade que se torne ainda mais exposta ao padrão elaborado pelos algoritmos. 

O progresso é uma marcha imparável, que viu no início dos anos 1990 0s escritórios de advocacia substituírem as máquinas de escrever pelos microcomputadores e, posteriormente experimentaram a revolução da internet. 

A Lei nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006, normatizou a informatização do processo judicial, dispondo sobre o uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais. Hoje a ninguém é estranho a realização de audiências ou atos processuais por meios digitais sem se deslocar para o tribunal ou para qualquer prédio público. 

Esses avanços que precisaram vir acompanhados de amparo e educação aos que não tinham acesso à tecnologia ou apresentavam dificuldades de adaptação a essas novas ferramentas. 

Agora, os algoritmos, o machine learning, o big data e a inteligência artificial apresentam a nova fronteira disruptiva para uma advocacia que deve estar preparada para cumprir sua indelével missão de garantir Justiça. 

Capítulo 2: Incorporação de Inteligência Artificial nos tribunais e na administração pública 

O expressivo desenvolvimento das tecnologias baseadas em Inteligência Artificial e suas variadas aplicações nos diversos campos da ação humana trazem promessas de exponenciais ganhos de produtividade nos mais variados setores da economia. Ao mesmo tempo as indagações quanto aos efeitos das TIC´s (Tecnologias de Informação e Comunicação) sobre as relações de trabalho e o seu potencial de destruir funções e postos de trabalho impõem cautela e maior reflexão quanto aos limites para sua utilização. 

Na administração pública, a substituição de processos mecânicos, com o abandono de suporte físico do papel, já mostra expressivos ganhos de eficiência e economia de recursos públicos. Estima-se que em pouco tempo, atos administrativos, e quiçá, judiciais poderão ser praticados eletronicamente por algoritmos de Inteligência Artificial. 

Ocioso dizer que máquinas não pensam como seres humanos, nem resolvem problemas com os mesmos processos cognitivos do cérebro biológico. Todavia isso não quer dizer que não possam utilizar inteligência e praticar atos à semelhança das capacidades humanas, superando-as no que toca a rapidez, acuidade, referência lógica e exatidão. 

Falar-se em Ato Administrativo Eletrônico por si só já implicará em mudança de conceitos jurídicos e de marco legal.  

O Código Civil impõe como requisito para o aperfeiçoamento do negócio jurídico a presença de agente capaz14, evidenciando notadamente a dúvida sobre a adequação formal de atos de cunho decisório por parte de máquinas e sistemas de Inteligência Artificial. Nossa Lei Civil pressupõe que os Atos Jurídicos sejam praticados por humanos, com capacidades intelectivas biológicas e sujeitos a dor e emoções. A assimilação e conceituação jurídica de eventos praticados por máquinas ainda é campo em incipiente desenvolvimento no Direito. 

Não obstante as ponderações de ordem ética e filosófica, a utilização de processos de classificação e padronização de Recursos Extraordinários (art. 102, III, CRFB),  no contexto do projeto Victor realizado através de parceria entre a Universidade de Brasília (UnB) e o Supremo Tribunal Federal, já demostra a imensa possibilidade de ganhos para a administração judiciária pela utilização de sistema de aprendizagem de máquina para a estruturação de dados e classificação de procedimentos processuais. 

As lições aprendidas pela parceria entre a academia e o Poder Judiciário já demonstraram notável capacidade de gerar inovações15. Com a aplicação de métodos de aprendizado computacional de máquina estruturou-se padrões nos processos jurídicos relativos a julgamentos de repercussão geral do STF, permitindo a geração de relatórios precisos acerca do atendimento dos requisitos de admissibilidade de Recursos Extraordinários. 

A ordenação e padronização de processos no Poder Judiciário também carreia promessa de maior uniformização decisória, face a enorme capacidade de processamento de informações estruturadas e identificação de demandas repetitivas. Melhor dizendo, as máquinas podem incrementar a unidade e coerência das decisões ao propor soluções iguais para casos semelhantes. 

No âmbito do Poder Judiciário, os mecanismos de Inteligência Artificial são utilizados como ferramentas auxiliares da atividade decisória. Ainda que já apresentem resultados alvissareiros em relação à celeridade processual e economia de recursos, ainda estão restritos à atividade ordinatória, apenas ajudando a atividade intelectiva e decisória final, que ainda é reservada ao julgador humano. 

Se no âmbito do Poder Judiciário a implantação de tecnologias baseadas em Inteligência Artificial já se mostrou promissora, maiores ainda são as possibilidades e potenciais de ganhos qualitativos no âmbito da administração e na prestação dos serviços públicos à sociedade. 

Embora também se possa questionar a legalidade do ciclo de formação do ato administrativo praticado por uma máquina, já que seu aperfeiçoamento não prescinde dos elementos volitivos humanos (sujeito capaz), há atos vinculados cuja prática não depende de atividade decisória. Exemplo disso podemos citar a licença para construção, porquanto, uma vez obedecidas as normas técnicas edilícias, a administração é obrigada a praticar o ato requerido, qual seja, a concessão de Alvará para Obra. 

De todo modo, as adequações feitas na prestação de serviços públicos durante a pandemia de COVID19, ainda que de forma emergencial, mostraram que a utilização de sistemas informatizados, com atendimento remoto e teletrabalho, podem ser mais eficientes e baratos do que os métodos tradicionais da burocracia ordinária. 

Exponencial poderá ser a melhoria nos serviços de saúde ao submeter a organização do sistema de marcação de consultas médicas, ou de compras de suprimentos governamentais à gestão eletrônica de algoritmo de Inteligência Artificial. Em havendo base de dados robusta e preparada para minimizar os tempos de espera em filas de atendimento, mais serviços de saúde podem ser postos à disposição da população. Além disso a pesquisa dos preços de insumos médicos e as compras feitas por máquinas, pode garantir a maior vantajosidade para a administração e a redução do desperdício e da prática de sobrepreço.  

De igual modo, os serviços educacionais poderão também experimentar ganhos. As ferramentas de Inteligência Artificial podem auxiliar a atividade docente com informações atualizadas e adequadas para cada tipo de aluno e de acordo com as competências específicas exigidas para uma determinada região. Então, se a economia local demanda mão-de-obra especializada em certo seguimento, os materiais escolares e o planejamento de aulas poderão ser feitos levando-se em conta a qualificação específica necessária para garantir maior empregabilidade. 

Nessa mesma linha, a motivação e a finalidade dos atos administrativos eletrônicos podem ajudar no combate à corrupção e ao desvio de finalidade, porquanto a Inteligência Artificial não estaria exposta aos riscos inerentes à corrupção e ao subjetivismo proibido pelo texto constitucional. 

Desafio ainda a ser enfrentado são os atos administrativos de cunho discricionário, pois dependem da deliberação do agente público e de juízo de conveniência e oportunidade, capacidade exclusiva do ser humano, cuja complexidade e amplitude de variáveis ainda não permitem avistar a possibilidade de substituição por meios eletrônicos. 

Induvidoso que a responsabilidade pelos atos Estatais sejam eles praticados eletronicamente, sejam praticados por agentes humanos, ainda recairá sobre o ente federativo que é competente para tanto. Atualmente, não se perquire culpa pelos prejuízos causados pela atuação estatal, de modo que a automatização de atos não demandará nenhuma alteração significativa de marco regulatório, nesse particular. 

Já com relação ao direito de regresso, aí sim a rastreabilidade e explicabilidade das ações praticadas por Inteligência Artificial delimitarão responsabilidade subjetiva, e, a depender do caso, atribuível à autoridade competente, ou, ao desenvolvedor da tecnologia. 

De toda sorte, a adoção das ferramentas tecnológicas traz grandes expectativas de melhoria na prestação de serviços públicos e na economia do escasso dinheiro público, que poderá ser alocada em áreas subfinanciadas, ou, num cenário otimista, permanecer na economia privada pelo barateamento da máquina pública.  

Capítulo 3:Alterações da dinâmica de trabalho no âmbito jurídico com a Inteligência Computacional e a Inteligência Artificial 

Na esteira das mudanças provocadas no mercado de trabalho pelas novas tecnologias, o campo jurídico se moderniza e sofre com os impactos na dinâmica de trabalho e na rotina de escritórios de advocacia a repartições públicas. O retrato do labor jurídico revela um momento de transição em que o novo e o antigo se encontram e o setor passa as tecnologias e práticas na peneira a fim de desenhar seu próprio futuro. 

O mercado da advocacia privada certamente sofre e continuará a sofrer mudanças significativas a medida em que essas tecnologias são incorporadas e a indústria 4.0 se torna uma realidade. Há particular sensibilidade na advocacia em face dos números extremamente elevados de advogados no País.  

Segundo a Ordem dos Advogados do Brasil16, existem cerca de 1,3 milhão de advogados que exercem regularmente a profissão, o que representa 1 advogado para cada 164 brasileiros residentes no País. O número eleva o Brasil ao topo da lista de advogados por habitante no mundo. Com mais de 1,9 mil17 cursos de Direito autorizados pelo Ministério da Educação no Brasil, é recorrente a preocupação do setor e, especialmente, da advocacia com a qualidade do ensino e, por conseguinte, da formação dos novos profissionais do Direito.  

A ampliação do uso da inteligência computacional e da inteligência artificial tem o condão de afetar, especialmente, aqueles profissionais que atuam com atividades mais operacionais e programáveis, como, por exemplo, o acompanhamento manual dos andamentos processuais, a elaboração de petições menos complexas padronizáveis e a busca e o acompanhamento de julgados. Essas atividades podem ser codificadas e substituídas por sistemas que reduzem o tempo de trabalho dos advogados.  

Nessa toada, a otimização do tempo implica em maior produtividade e, consequentemente, menos profissionais são necessários para prestar o mesmo serviço, bem como mais serviços podem ser prestados a custos cada vez menores. As novas tecnologias também podem afetar a gestão dos escritórios por meio das cobranças automáticas de clientes quando se usa o formato de hora trabalhada, gerando maior precisão quanto ao tempo gasto por cada profissional na execução das tarefas.  

Por outro lado, são identificados desafios e a resistência do mercado ao formato de cobrança por hora trabalhada, dada a complexidade da atuação jurídica, a imprevisibilidade do tempo gasto para realizar as atividades demandadas e a própria natureza do negócio, centrado na relação com o cliente. Assim, o modelo de negócios também se moderniza e encontra auxílio nas novas tecnologias para amparar uma transição mais suave. 

“Client demand for lower legal expenses is only part of the story behind the evolution of private legal practice. It provided the necessary impetus for law firms to transform their business model. Technological advances provide the tools for law firms to facilitate this transition, and make it not only financially viable but also potentially lucrative for a firm’s equity partners. These recent advances, while dramatic in their effect, are merely the latest transition in the technical progression of legal information.”18 

A dinâmica de trabalho na advocacia já mudou significativamente com aplicação de novas tecnologias. Atualmente, é possível observar a multiplicidade de sistemas que se incorporaram como ferramentas corriqueiras e que permeiam a atividade jurídica. Esta já é uma realidade da advocacia e da atividade jurídica judicial e administrativa.  

O uso dessas ferramentas permite que, em poucos segundos, todos os julgados relacionados a certa questão sejam selecionados para a análise do advogado. Ainda, a digitalização dos processos implica da desnecessidade de diligência ao fórum e de se fazer carga do processo para conhecer seu conteúdo. O peticionamento atualmente pode ser feito em poucos cliques, reduzindo os riscos de perda de prazo e ampliando o horário para a sua entrega, já que não mais dependem da presença de um servidor para receber e carimbar essas petições.  

Para além, os tribunais também incorporam tecnologias bastante avançadas e desenvolvem, em parceria com universidades ou grupos de pesquisa, softwares de admissibilidade de recursos ou de identificação de causas de repercussão geral, conforme indicado no Capítulo 2 deste estudo.  

O mesmo acontece com o contencioso administrativo, já que, fora dos tribunais, a tecnologia utilizada pela Administração Pública permite o desenvolvimento de Business Intelligence (“BI”) relacionado a setores regulados e que permitem conhecer informações relevantes para a atuação. Indica-se, como exemplo, o BI da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (“Antaq”) que permite ao público em geral conhecer todos os terminais portuários autorizados no País e o BI da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (“ANP”) que permite avaliar a tancagem disponível para movimentar combustíveis regulados.  

Tanto os BIs da Antaq e da ANP quanto softwares utilizados pelos Tribunais são fruto da tecnologia de aprendizagem de máquina. Esses instrumentos são possíveis pela aplicação da tecnologia de aprendizagem de máquina (machine learning) que se baseia em três aspectos principais: características, tarefas e modelos. As características podem ser exemplificadas pelos termos contidos nos documentos jurídicos e as construções gramaticais e informações semânticas a ele associadas. A tarefa é o problema que se objetiva resolver; a título de exemplo, indica-se a identificação da admissibilidade de um recurso. O modelo, por sua vez, é o resultado da aplicação da aprendizagem de máquina para realizar a tarefa desejada sobre as características apresentadas19.  

De maneira geral, a inteligência artificial permite desenvolver soluções capazes de organizar informações presentes em documentos não estruturados20. O Direito é uma ciência social aplicada e a advocacia não pode se amparar apenas em estruturas estanques e padronizadas, sob pena de se esquivar de endereçar as particularidades do caso concreto e das nuances necessárias para garantir o melhor interesse do representado.  

A capacidade de organizar informações em documentos não estruturados é o que permite a análise de documentos em formatos diversos. São exemplos: (i) a revisão e estruturação com maior precisão de contratos complexos com grandes e detalhadas matrizes de responsabilidade; (ii) a maior segurança e fundamentação na previsão das decisões judiciais; ou mesmo (iii) sob ótica financeira, a maior facilidade em estimar o valor da causa de um novo processo projetando valores futuros no tempo de julgamento estimado. 

Se por um lado, o uso da inteligência artificial como ferramenta de gestão dos escritórios e da própria atividade é estimulado, por outro, seu uso em atividades típicas da advocacia encontra não apenas a resistência do mercado advocatício, como também algumas barreiras legais.  

O caso “Valentina, Robô do Trabalhador” é um exemplo dessa resistência. A Valentina é um software de inteligência artificial que surgiu em uma página do Facebook para sanar dúvidas dos usuários quanto aos direitos trabalhistas. A empresa desenvolvedora utilizava outros chatbots para dúvidas consumeristas (Haroldo, Robô do Consumidor) e tributárias (Leopoldo, Robô do Contribuinte).  

Segundo Pessoa, Valentina assumia não ser advogada; no entanto, afirmava a possibilidade de “comprar a briga”, de assumir os custos processuais e reembolsar os valores devidos, retendo uma taxa pelo serviço. A solução passava pela aquisição dos direitos patrimoniais do empregado para agir em seu nome em processos administrativos e judiciais. 

A Seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil e o Instituto dos Advogados Brasileiros repudiaram Valentina e esclareceram em nota que as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídica seriam privativas de advogados em conformidade com o Estatuto da Advocacia (Lei n. 8.906, de 4 de julho de 199421).  

A organização e a resistência da categoria conduzem ao entendimento de que a incorporação das novas tecnologias também encontrará barreiras legais para a substituição da figura do advogado em um panorama de curto e médio prazo.  

É fato que a inteligência artificial já representa uma mudança na organização do trabalho jurídico. No entanto, o uso de softwares de serviços jurídicos atinge principalmente a base do serviço, como estagiários e servidores da Justiça, p.e., não trazendo o mesmo impacto para sócios de escritórios e para juízes. Assim, é premente a manutenção da advocacia pelo advogado e, em paralelo, a automatização de tudo aquilo que for possível. 

Análise semelhante se dá no Judiciário, em que o papel do magistrado como tomador de decisão em equilíbrio da justiça e da previsão legal é reforçado e não deve ser afetado em sua existência, mas no exercício e nos mecanismos disponíveis para a profissão.  

The legal sciences are substantially valuative and ontological, that is, they refer to the subject itself, in its unrestricted and indispensable complexity. Ethical behavior is generally defined socially as that which is good and is directly linked to the moral rules of society generated by its own history and culture. 

The magistrate is the agent of the judiciary entrusted with making decisions that are both fair and in accordance with the law. He must make decisions that resolve the actual conflict presented while also considering the ethical values and legal principles that underlie all judicial activity (transparency, legality, right to be heard, wide defense, etc.). The magistrate bases his actions and decisions not only on legal doctrine and the application of the positive rules of the legal system, but also takes into account a wide range of historical knowledge consolidated from centuries of experience examining diverse aspects of legal phenomena, including legal sociology, the history of law, philosophy of law, ethics, that is, all of the so-called “legal sciences”. 

The idea that machines could make legal decisions for the courts is not new and has existed for decades. The main question is how to introduce all of this 

knowledge, which is part of the theoretical training of all magistrates, into AI systems.22 

Assim, a perspectiva que se apresenta para a advocacia com a inteligência artificial é bastante semelhante aos processos de industrialização e modernização de outras épocas. Se por um lado, o prognóstico indica a tecnologia como uma ferramenta disponível para os profissionais de maior nível na hierarquia, simultaneamente pode indicar uma ameaça aos demais profissionais que podem encontrar a redução dos postos de trabalho. 

Conclusão  

O presente estudo revela um panorama para a advocacia em que cada vez mais a inteligência computacional e a inteligência artificial são utilizadas na atividade da prestação de serviços, bem como na atividade jurídica propriamente dita.  

A tecnologia é uma realidade que pode ser vista como instrumento para a ampliação do acesso à justiça e, com isso, também para a democratização da justiça. Ainda, a nova realidade também já pode ser vista com o uso de novas tecnologias na administração pública e na atuação e no dia a dia dos tribunais de todo o País. Como um efeito cascata, a modernização da atividade jurídica implica também em alterações da dinâmica de trabalho da advocacia.  

Assim, as perspectivas otimistas para o setor indicam a incorporação da tecnologia como ferramenta auxiliar sem, contudo, substituir o papel principal do profissional no curto e médio prazos.  

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